sexta-feira, 16 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 43



16 de Março de 2012

Hannibas avança com todo o cuidado através dos imensos corredores gelados do templo. O seu corpo azul contrasta fortemente com a brancura que reveste o interior da montanha. O lenço que lhe tapa a vista, colocado em volta da cabeça, parece que a separa em duas metades mimetizando-lhe o centro do rosto que se funde com a mãe-montanha.
O tecto invisível do mosteiro desceu tanto que obrigou o peregrino a assumir a condição mais severa de penitente. O peito desce ao chão e de corpo deitado arrasta-se nesse espaço exíguo por onde mal consegue passar. Parece agora voar no pavimento de gelo ao ensaiar com os braços os movimentos que lhe permitem deslocar-se. Conquista metro a metro o caminho. Nessa difícil condição avançar dura uma pequena eternidade. A pele escamada tem sido uma aliada nesta difícil tarefa. Ao rastejar o jovem príncipe escuta ao longe a balada de Baharhvatin que não desiste de o acompanhar. A voz melodiosa de Sheridan segue-o mais afastada do que anteriormente, mas segue-o, fazendo-lhe recordar os dias, as noites e as madrugadas que têm para partilhar.
A cor das palavras é igual, o sonho que se entoa desenha-se com a mesma lucidez com que se conta esta história azul.
Ao arrastar-se pelo chão do mosteiro, as primeiras palavras da história regressam à sua memória e ecoam pelas invisíveis paredes da construção.
- Palavra que não pensavas ter de viajar até tão distantes paisagens. Como agora sabes, as histórias constroem-se ao seu próprio ritmo e as personagens surgem, invariavelmente, sem aviso prévio. Apenas a luz, o tempo impiedoso e as cores que os objectos se encarregam de reflectir, são imutáveis. Percebes agora, Hannibas, qual a razão porque o muro que protege esta moradia dá uma frágil sensação de segurança? Percebes agora, Hannibas, porque não consegues adivinhar vida nas cercanias, no pátio e porque destas vidraças nada é visível do exterior?
O peregrino penitente escuta a voz da lei austera. Deitado, quase emparedado neste gelo infinito entre o chão e o tecto da construção, recorda o início da epopeia quando ainda não era, quando a história ainda não era a sua história, quando o tempo que tudo faz acontecer ainda mal tinha nascido. E responde:
- O mundo do lado de fora deste edifício continua frágil na construção que os homens lhe foram acrescentando. As suas vidas parecem cada vez mais frágeis e enegrecidas. Foram construindo essa espécie de casulos, conchas ou cascas pensadas para sua protecção. Procuram por um guia que os ensine, que os faça crescer e os faça acreditar de novo num destino com sentido.
E a voz da lei austera pergunta novamente:
- Sabes como manter, como preservar as suas lágrimas, os seus desesperos, sabes como tratar a solidão e os seus receios?
E o jovem príncipe responde:
- Conforme as águas, as marés e os ventos. Mantê-las-ei com todos os cuidados oferecendo-lhes bebidas doces e néctares perfumados com carinho. Servir-lhes-ei tudo o que necessitarem para se manterem sempre jovens e vigorosos, para que consigam alcançar todos os sonhos e de todas as fraquezas fazer forças.
- E o que te impede de seres um outro anónimo caminhante?
A resposta do futuro rei-serpente foi imediata.
- Eu não avanço sem conhecer esta causa. Encontrei todas as histórias. Li todas as histórias sem excepção, até a primeira. Faço parte das histórias, com elas construi a minha que agora edifico, exactamente como aconteceu com a primeira. Eu sou o momento. Eu sou a luz e a água, sou o caminho e a história que ajudarão a construir.
E a voz da lei austera volta a perguntar:
- Mas os dias fogem, desaparecem pelos intervalos dos dedos como a fina areia que se depositou nas praias do tempo. O que podes fazer para impedir o desaparecimento das histórias desses dias, esses segredos invisíveis que se escondem como ilhas no interior de cada peregrino?
Hannibas volta a responder:
- Nada nesta canção é sobre mim. Assim aprendi, assim ensinarei. Deverão saber escutar as palavras de quem serão. Deverão avançar corajosamente pelas pedras dos verbos partilhados. Deverão escrever as suas histórias com as cores da cinza como aconteceu com a primeira de todas as histórias nessa longínqua primeira vez.
As paredes gigantescas da construção recuaram e o pesado tecto gelado do mosteiro volta a dar espaço ao penitente peregrino azul. O coração de Wawaghan vibra melodioso dentro de um imenso cristal de gelo iluminado que surgiu no centro invisível do labirinto sagrado. Hannibas não pode ver, só sentir. Os seus olhos permanecem tapados pelo lenço branco imaculado que o xamã Zharkhanis lhe colocou na entrada do mosteiro. O coração do jovem bate ao mesmo ritmo do gigantesco coração da montanha, bate ao mesmo ritmo do coração de Zharkhanis, bate ao ritmo do coração de Argenta, a rainha sua mãe, bate ao mesmo compasso do coração de todos os habitantes do império de Chover e bate ao mesmo ritmo do coração apaixonado de Sheridan cujo rosto brilha por cima do coração vermelho de Wawaghan. O príncipe ergue-se da sua posição de penitente. O templo recebe em todas as salas, corredores, salões, paredes, pilastras, portas e portões a melodiosa música de Baharhvatin cantada pela formosa Sheridan. O futuro rei-serpente avança decidido na direcção do coração da montanha. Este é o momento em que o seu corpo azul irá pintar de bronze o cofre no vermelho.
Uma luz intensa ilumina-lhe o rosto.
O lenço acaba de se transformar em luz para iluminar o rosto do jovem príncipe.
Hannibas vê Sheridan, vê o coração vermelho de Wawaghan que chama por si, que bate por si. O seu coração bate ao mesmo ritmo sagrado de todas as coisas e sente o ritmo sagrado com que vibram todas as coisas.
Este é o momento de avançar.
Este é o momento em que o coração da mãe-montanha se pinta de bronze, se transforma em cofre e dá a conhecer a Hannibas todas as palavras, as que voaram pelas mais longínquas galáxias, as que contêm todos os segredos, as que já não pertencem a qualquer pedra, as que fazem os universos fervilhar, as que alimentam e definem as estratégias, as que sabem escutar, as que lhe dizem quem será, as que já foram lidas, estudadas e visionadas em todos os Benzerinaguis acontecidos, no que acontece e nos que estão por acontecer, as que destroem muralhas infinitas, as que teimam em não serenar, as que cresceram neste e com este templo sagrado, as que só se revelam nas madrugadas, as que viram o ontem e o amanhã, as loucas, as improváveis, as invencíveis e as que o tornarão imortal.
Este é o momento em que se derrotam os dragões e as gémeas escritoras, em que se derrotam os desertos e todos os venenos.
Este é o momento em que o céu se pinta de azul, em que o azul pinta de bronze o coração vermelho da montanha.
Tudo o que se encontrava destruído, tudo o que se escondia por debaixo dos escombros foi corrigido.
Os segredos da Hglira da casa Kostarinadis são pertença de Hannibas. Este é o dia do seu décimo sexto aniversário. A invencibilidade e imortalidade fazem parte do coração da montanha, pertencem ao sagrado coração vermelho da mãe-montanha e foram-lhe oferecidas. Este é o inestimável segredo, tesouro mais valioso do grande império de Chover.
- O meu nome é Hannibas. Sou o herdeiro azul que honrará este legado de meu pai e meus avós.
- O meu nome é Hannibas. Sou a sétima chave, aquela que abre a derradeira porta do cofre de bronze, o próprio coração da mãe-montanha.
- O meu nome é Hannibas, nome de herói de todas as epopeias, vencedor dos fantasmas, vencedor das batalhas contra todos os demónios.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que altera todas as epopeias, quem lhes providencia auxílio para que não se pintem com as cores da escuridão.
- O meu nome é Hannibas, príncipe coroado rei, sou aquele que recebeu no interior da montanha este presente sem igual no dia do décimo sexto aniversário, agora sou invisível, agora sou imortal.
- O meu nome é Hannibas, quarto rei-serpente de Chover, sou aquele que conhece o rosto de todos os escritores, o que conhece todas as histórias, todos os lugares, todas as paisagens, todos os verbos e todos os momentos.
- O meu nome é Hannibas, sou todos aqueles que me transportaram até aqui, que me ajudaram a chegar até aqui, sou a diferença entre sonho e realidade, sou o rio, o sol e a nascente, sou a luz, as sombras, as neblinas, sou o novo princípio desta história.
- O meu nome é Hannibas, sou o que antes de renascer percorreu este caminho como penitente, como peregrino penitente, como água do Marthiris, como as gotas de chuva que são as lágrimas eternas e sagradas do rio, como espuma das salgadas marés do Centhaurydis, como vento, como ciclone, como partícula infinitésima de cristal de gelo, como pássaro, como princípio, meio e fim de todas as coisas.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que abre os braços e recebe, aquele que entende as letras e palavras desta história como uma bênção, esta história que não é sua mas é a sua história, sou aquele que a perpetuará como mensageiro abnegado, que a partilhará com o povo de Chover preparando-o para os séculos de glória que se seguirão.
- O meu nome é Hannibas, sou a memória de Lakis e a vontade de Argenta, rainha minha mãe, sou a alma do meu povo, do império que represento e defendo, que alimento e a quem dou de beber, sou todas as suas palavras e sou o fruto azulado de todas essas histórias.
- O meu nome é Hannibas, faço parte da primeira história, da primeira de todas as histórias, sou palavra da epopeia inicial, um seu humilde viajante, um pedaço dessa luz, dessa ideia, desse destino.
- O meu nome é Hannibas, sou filho de Lakis e Argenta, neto de Ravehrthatis, bisneto de Rakis, sou aquele que se veio entregar a estes ventos gelados. Somos lâminas de luz em corpos de tempos diferentes, viandantes que passearam por todos os lugares em todos os momentos.
- O meu nome é Hannibas, rei alado, rei serpente, rei azul escamado. Sou aquele que Larniki ensinou, aquele que conhece a vontade do mestre conselheiro, aquele que, como o mestre, entende a raiz dos sofrimentos, as cores de todas as esperanças e os ciclos de todos os elementos.
- O meu nome é Hannibas, que nesta epopeia se formou maior que todas as pedras, como a montanha, como este todo invisível criado no seu interior e que explodiu dando origem ao lado de fora das coisas, derrotando a razão de todas as inexistências.
- O meu nome é Hannibas, em três dias enfrentei demónios que quase me secaram a esperança, do passado recebi tantas memórias, do futuro recebi tantos segredos e neste presente, neste agora eu renasci.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que escuta os sinais do silêncio, aquele que avança pelo vazio onde vivem os sons da natureza, aquele que não pediu para ser pássaro, nem rei nem herói.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele para quem tempo e sonho são abstractos, sou aquele que sabe que esta viagem continua e que nunca terá fim.

*

As paredes do salão de jogo pararam de avançar. Ninguém parece ter notado.
Os que escreviam com medo neste Benzerinagui, desde que o movimento começou, deixaram de escrever. A batalha disputada com a arte das suas penas está perdida. Deixaram-se derrotar pelo medo, pelo receio, as palavras secaram, deixaram de ser desenhadas servindo-lhes a derrota nesta aventura. Os jogadores escritores não entendem o que se passa. Mas que motivo têm para tentar compreender o que quer que seja?
Restam dois escritores na última mesa. Aqui permanecerão por mais alguns séculos. As cores dos seus tempos desafiam a lógica, que não existe, desafiam o medo, que não os consome, desafiam a dor, que não sentem, e escrevem exactamente o contrário daquilo que todos julgariam ser correcto para tentar obter a vitória final. Ao escreverem fogem de todos aqueles que os seguiam e derrotam todos os que os seguiam. Aprendem com as lições encerradas nos poemas, bebem as palavras que deles nascem e assim se purificam. Jogaram com palavras que os outros não esperavam, jogaram com a alma dos segredos, essas mensagens escondidas nos passos que os adversários não se atreveram a cumprir.
O que se arquiva no cofre de bronze é a eternidade, essa perpétua defensora do mais íntimo segredo.
- Quem somos?
- Quem sou?
- Conhecerei todos os eus que me constroem? Conhecerei os eus que me ameaçam, os eus que me ensinam, os que se escondem à beira do precipício, os que peregrinam no topo das montanhas e olham de frente o próprio sonho?
Se somos cegos devemos avançar um passo de cada vez, subir um degrau de cada vez, viver um só dia de cada vez.
Os habitantes de Chover querem conhecer a verdade, mas a verdade não existe, é apenas ilusão. O tempo não existe, é apenas ilusão.
Hannibas quer as asas só para si, mais um momento. Quer partir numa viagem só dele para tentar perceber o tempo, o espaço, a montanha, para se conhecer, para se entender, para esconder todas as pedras de todas as histórias. Quer partir numa viagem só sua, sem pontes, sem defesas e sem nenhum dos sonhos desta epopeia, a não ser esta estranha cegueira que o ilumina.
Desapareceu!
Foi até esse lugar onde as sombras não existem e onde as regras são quebradas.
Partiu à procura do seu sonho, da sua própria história.

*

- Porquê azul? Porquê tantos silêncios estendidos ao longo destes muros que atravesso? Porquê este silêncio insuportável dos rios que já vivi? Eu queria ser o sonhador e não mais aquele que continua a escutar. Eu queria ser rei-escritor e não aquele que ouve o ruído de todos os seres vivos e dos inertes. Eu queria ser vencedor do Benzerinagui onde fui criado e onde se conta no escuro esta aventura. Queria ser aquele que descreve as cores do tempo, que desafia a lógica, que descreve os medos presentes em todas as dores que nos consomem. Queria estar sentado à mesa de jogo, fazer acontecer esta epopeia em todas as holoesferas espalhadas por todos os universos conhecidos e por conhecer. Queria ser aquele que recebe e dá a conhecer a alma dos segredos, aquele que foge das emboscadas dos adversários, aquele que veste as palavras com ilusões tão palpáveis que até lhes cheiramos as consequências dos detalhes.
E o tempo e o sonho e as palavras são abstractos, como esta história, como todas as histórias de todos os Benzerinaguis, inclusive a primeira.
- Não mudes! Tu que me escreves e me crias, não mudes! Porque mudas? Se o fizeres deixarei de conhecer os meus eus, deixarei de ser capaz de sonhar, deixarei de ser capaz de devolver a esperança e a glória ao império. Peço-te de coração nas mãos que não mudes! Continua a deixar chegar essas palavras, deixar chegar a verdade e a esperança. Continua a procurar nas pedras as histórias, porque viver sem procurar é deixar de acreditar na alma das pedras e em todos os segredos que elas nos ensinam.


F I M 

terça-feira, 13 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 42



12 de Março de 2012


A montanha não se fechou, moveu-se para proteger Hannibas. Faltava pouco para atingir o último degrau da viagem quando uma vontade amaldiçoada surgiu, vinda do nada, para o destroçar. São muito poderosos os poderes do maldito que invadem as histórias deste Benzerinagui. A gémea escritora permanece incólume à ameaça das paredes, aliás, a situação favoreceu a sua veia criadora. Öllin parece rejuvenescida e de todas as galáxias surgem notícias do grande apreço e interesse que a sua epopeia tem gerado. Se não acontecesse o desabamento da montanha por cima do cego peregrino já não existiriam palavras que contassem esta história.
Zharkhanis avisou a montanha, Wawaghan avisou Argenta, a rainha avisou Hannibas e o jovem princípe usou as asas imensas para se proteger da intervenção sagrada da mãe-montanha. Os quatro corações bateram em sintonia e tudo aconteceu como previsto. O escudo protector deu guarida ao futuro rei-serpente que acabou por ser transportado até ao centro de Wawaghan onde o mosteiro passou a existir. A gigantesca construção invisível acompanhou o percurso de Hannibas e encontra-se agora à sua frente. Argenta consegue vislumbrar o mítico lugar no fundo das águas do Centaurydhis, consegue ver o filho aninhado no centro das neves da montanha, protegido pelas suas imensas asas indestrutíveis. Consegue-se acalmar. Sem que o príncipe sentisse, Argenta falou-lhe, comunicou-lhe o destino, o rumo a seguir. A força que necessita para o que falta da viagem encontrá-la-á nesta improvável conjugação de forças imbatíveis.
A cegueira branca, luminosa, irá abandoná-lo. Hannibas consegue alcançar a entrada do templo onde Zharkhanis permaneceu à espera deste dia. O cofre de bronze encontra-se algures numa das salas da gigantesca construção. Agora nada mais importa, só este silêncio, este momento, esta verdade. O guardião veste um traje cerimonial riquíssimo em tons de verde e dourado. Nas suas mãos repousam dois lenços de seda branca, imaculadamente perfumados com finos odores de mil flores azuis da montanha.
Nenhuma palavra sai da boca dos dois homens, nenhum gesto a mais é ensaiado, nenhum gesto a menos fica por coreografar. O corpo azul escamado de Hannibas é o seu único aliado. Ao redor do fino pescoço do sobrinho, Zharkhanis coloca o primeiro lenço perfumado. A sorrir, ata o segundo lenço à volta da cabeça do príncipe tapando-lhe os olhos, sonegando-lhe novamente o sentido da visão. Desta vez a cegueira é escura, bem diferente da que o acompanhou nos últimos momentos da jornada. É assim que tentará encontrar o que aqui veio procurar. Só o peregrino penitente poderá atingir a sala do magnífico tesouro. A última palavra encontra-se arquivada nessa pedra de bronze em forma de pequeno cofre. Uma única palavra que contém uma história inteira e partes importantes da primeira. Uma palavra descendente da primeira de todas as palavras. Uma palavra esconde-se nessa importante pedra invisível que, tal como as outras, terá de ser cuidadosamente desembrulhada.
Os séculos fogem, como as décadas, os anos, os meses, os dias, os minutos e todos os segundos, mas nada os faz brilhar com maior intensidade do que as pedras invisíveis que a montanha ajuda a descobrir.
- Aqui venho procurar a última palavra, adjectivo desenhado com as cores brilhantes da lua, adjectivo desenhado pelo corpo invisível do pequeno dragão branco. Aqui me ajudaram a chegar. Esta história não é minha mas também é a minha história. Os sonhos de todo um império constroem-se através dela e dela fazem parte. Eu não me importo, já não me importo. Este é o momento em que nada mais importa. Tenho de conseguir responder às perguntas da voz da lei austera. Fui capaz de viver e de respirar em tudo o que vive. Fui capaz de sentir e existir em todas as coisas e todas as coisas em mim. Descobri em mim todas as chaves desse cofre, menos a última. Este azul que me protege é quase tão eterno como a madrugada, como as águas salgadas de todos os mares e oceanos, como as águas doces e cristalinas de todas as nascentes. Fiz todas essas viagens. Fui até ao princípio e até ao fim das cordilheiras, salvei meus irmãos do pesadelo da derrota, da vergonha e da desonra, salvei a alma de meu saudoso pai que me salvou a mim ao fazer-se escutar pela voz da lei austera. Não me resta outra solução. Caminharei neste coração de Wawaghan construído em forma de mosteiro, guardado zelosamente pelo nobre guardião. Avançarei sem alterar a cegueira que me foi aqui apresentada. Avançarei como penitente peregrino pois foi assim que aqui cheguei. Volta para trás minha mãe, regressa ao sossego de Chover. O teu corpo foi o meu nesta fase delicada da jornada. Sem a tua ajuda, sem as tuas palavras corajosas, certamente não teria conseguido sobreviver. Volta para trás minha mãe, regressa ao sossego da capital do nosso império onde todos anseiam a tua chegada e não te preocupes mais com o que me possa vir a acontecer.

MOMENTOS DOIS - 41



11 de Março de 2011
 
 
Onde esconder o segredo final senão num lugar distante, invisível, frio e quase impossível de alcançar?
Encontrá-lo de noite é tarefa votada à derrota. Encontrá-lo de dia é tão difícil como alcançar a porta da eternidade. A montanha não necessita de guardas para preservar o lugar secreto do Mosteiro. Encurralado junto ao seu coração, um único guardião mantém a ordem e o crescimento do templo que raramente recebe visitantes. Zharkhanis é o último desses guardiões. Conhece-lhe todas as paredes, escadas, entradas perdidas e portas encerradas.
Palavras. Todas as palavras se arquivam no coração da montanha. Zharkhanis escutou o silêncio profundo que se seguiu à queda de grande parte da montanha-mãe. Fechou todas as portas do mosteiro, todas, menos uma. Precisa da confirmação de Wawaghan, precisa saber se o coração de Hannibas mantém a história quente, a montanha viva e a esperança em Argenta. Não se podem perder as palavras desta história.
A norte, bem mais a norte, a montanha murmura, faz-se escutar. São quase imperceptíveis estes novos sinais que Wawaghan vai cantando. O xamã escutou-os. Argenta escutou-os para seu contentamento.
A vencedora dos anteriores Benzerinaguis tem um ponto vulnerável exactamente por ter sido a vencedora. Mais cedo ou mais tarde essa fraqueza será a causadora do seu rotundo fracasso.
A história ainda não terminou. O príncipe vive e prepara-se para receber o segredo mais procurado que se encontra espalhado em todas as histórias arquivadas nas pedras da montanha-mãe. Habituou-se à cegueira branca que o ilumina, para ele não há dia nem noite nem madrugada. Aguarda as novas palavras para que os planetas possam continuar a nascer e a dançar. São elas que os ajudam a rodopiar como bailarinos celestes em início de vida, uns atrás dos outros numa energia arrebatada. São elas que lhes fornecem a força vital para nascer e dançar. Depois acalmam, regressam ao silêncio e giram em torno da luz intensa que os aquece.
As portas encontram-se fechadas.
O tempo parou.
Quem parou o tempo? Quem canta a canção de Baharhvatin? Quem voa livremente por cima do tempo parado, por cima das nuvens eternas do reino da Chover? Este é um segredo que também se encontra no interior do mosteiro, escondido numa de suas pedras invisíveis, fechado, arquivado numa sala invisível.
O tempo não pára, mesmo quando pára. O tempo é um ditador sem falhas, dominador, determina o rumo dos acontecimentos no salão de jogo sem que os competidores o consigam entender. É ele quem os controla e quem se delicia com as histórias que vão sendo construídas ao seu redor. O jogo desde há muito que foi programado para que tudo faça sentido, para que todos os implicados no Benzerinagui sintam esta estranha forma de tranquilidade que lhes permite criar os seus enredos. Mas o que se encontra escondido por debaixo dessa fina película que o tempo fabricou é de uma confusão e estranheza incomparáveis.
Hannibas mexe os olhos debaixo da brancura que o cega. Afinal a montanha não o destroçou. Afinal a montanha desabou para proteger o futuro rei-serpente de um trágico fim.
As mensagens não param de chegar ao local onde Wawaghan escondeu Hannibas, ali tão perto do seu coração. Os sinais são evidentes. Nada começa, nada é e nada termina. Isto se comunica na balada serena e ritmada de Baharhvatin.
- Vai meu filho, segue as preciosas instruções do coração da mãe-montanha. Escuta essas preciosas instruções usando o teu coração. Aguardamos a tua chegada para que os planetas possam continuar a nascer, a crescer e a bailar.
O frio e a neblina estão presentes. A montanha de gelo desabou. Hannibas não sentiu o peso tremendo de tudo o que lhe caiu em cima. Zharkhanis sentiu-o tão perto da entrada do templo quando tudo isto aconteceu. O chão tremeu, o império inteiro tremeu com a queda de Wawaghan. O objectivo continua tão difícil de alcançar agora como no início da jornada.

sexta-feira, 9 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 40



9 de Março de 2012

Zharkhanis encontra-se sentado à espera de Hannibas junto a uma passagem muito estreita que dá acesso à entrada do templo. Os ventos gelados e cortantes são os únicos habitantes desta região invisível de Wawaghan.
A montanha está nervosa, o seu coração bate descompassado como nunca aconteceu e chega a parar por breves instantes. Grande parte da mãe-montanha desaba nesse momento numa brancura infinita e luminosa que engole o corpo azul do jovem príncipe.
O coração de Zharkhanis também parou de bater após a hecatombe.
Ninguém é mais mestre de coisa alguma.
Ninguém conhece os sonhos como a montanha-mãe pois é lá que eles vivem, e agora partiram. Nesta queda desapareceram milhões de poemas, milhares de milhões de histórias e parte importante da primeira.
Recebo a novidade com o coração parado, mas ainda vivo.
O tempo parou nesta branca e luminosa despedida.
- O mar é agora o meu corpo. Deixei de voar pelas estrelas, passei a ser o grande mar onde voam as estrelas. O mar é o caminho, a origem, o fim e o destino. Eu não queria ser o mar, desejei ser o pássaro peregrino, desejei habitar de novo o corpo do pássaro peregrino e voei pelos céus, por cima dos glaciares e vales de Wawaghan, até encontrar a origem de quem sou, de quem já não sou neste momento. Na montanha onde respiro, onde me vejo e reconheço, onde me escondo e medito, mergulhei nas águas misteriosas, desci ao coração das pedras, li as suas histórias, todas as histórias, e meditei. Recebi as memórias perdidas da montanha. As histórias transportaram-me para lá das neblinas, para lá de todas as estrelas, para lá de todas as galáxias e de todos os desertos. As minhas asas transformaram-me no maior dos peregrinos, naquele que conhece o tempo e a lembrança, naquele que sabe quem é, quem foi e quem será.
A linhagem nobre do herói da epopeia permitiu-lhe receber a protecção de Argenta, a rainha sua mãe. Foi por ela resgatado, salvo e alimentado com todo o amor e afecto.
- Não te deixes abater pela aparente destruição de todas estas histórias, meu querido Hannibas. Acredita em mim e no que te digo. Agora que o tempo parou e as neves brancas de Wawaghan te escondem, aproveita para meditar. O império precisa de ti, precisa da tua história, precisa que lhe contes as palavras eternas da primeira. Serás o seu guia iluminado, o verdadeiro guia iluminado. As mentiras serão apagadas, os destinos ficarão resguardados e serão reconstruídos com base na verdade das tuas palavras. O mar é de novo o teu corpo. Deixaste de voar pelas estrelas e passaste a ser o grande mar onde voam as estrelas. És o caminho, a origem, o fim e o princípio e tens a vida inteira para nos ensinar.
Foram muitos os dias que caminhou, com os olhos desprotegidos, pela imensidão gelada, branca e luminosa de Wawaghan acabando por cegar.
O tempo permanece silencioso debaixo de tanta neve, de tanto gelo, de tanto azul.
O Centaurydhis deixou de ser o mar imenso que banha a costa sul do grande império de Chover.
Hannibas é agora o Centaurydhis, é agora a dimensão líquida das neves eternas de Wawaghan. Hannibas é agora presente, passado e futuro de todas as histórias, é o caminho, a origem, o fim e o princípio. Dele nascem as nuvens que vivem nos céus de Chover, delas caem as chuvas e as neves perpétuas que dão corpo ao Marthiris, que dão corpo ao Wirwih, ao Neda, ao Syhanuk, ao Nidishikhan e a todos os outros afluentes que alimentam os povos do império e que depois regressam carregados de histórias à foz onde nasceram.
Os jogadores estão muito nervosos. A tinta já não flui de suas penas como até aqui. Olham-se aflitos, inquietos, expectantes. A notícia veiculada alterou-lhes a concentração e o rumo das histórias.
O meu outro eu entregou-me uma mensagem num pequeno papel dobrado em quatro. Depositou-a no topo do segundo monte de papéis que se encontram amontoados à minha frente e logo regressou ao trabalho.
Esta história não me pertence. Continuo nesta nobre tarefa sem saber como aqui cheguei. Todas as palavras, todas as paisagens, os enredos e todas as personagens se foram apresentando desde o início do jogo. Eu mais não fiz que os receber e, tal como se ofereceram, os descrevi.
Sinto que nada mais é igual ao que já foi. O medo passou a estar presente no salão de jogo gerando uma sentida irrequietude. Quem aparenta estar imune à situação é a gémea escritora. O seu rosto ganhou cores, o cabelo brilho e a sua pena acrescenta palavras novas ao enredo num ritmo frenético que faz crescer a montanha de folhas onde as desenha.
As paredes avançam. Agora todos o sabem. O vencedor desta mesa tem de ser declarado brevemente ou nada do que aqui se escreve terá acontecido.
Eu não escapo à nefasta influência dessa possibilidade.
Quem conseguirá travar o lento mas metódico avanço das paredes?
Para quê tanta inspiração, tanta transpiração na descrição de tantas epopeias, de tantas aventuras, se nenhuma destas histórias existirá no futuro deste Benzerinagui? Será como se nunca tivessem nascido.
- Caro adversário, o tempo não existe, é apenas ilusão. Assim o escrevi, assim o escreve e escreverá. Assim o recordo. Este Benzerinagui, como todos, é um mistério. O seu objectivo é um mistério que ninguém conhece, nem mesmo o grande mestre Tsu-Lee-Khan. Este é o momento de viragem. Todas as histórias estão ameaçadas. Acontece assim desde que o jogo foi criado pelo bisavô de todos os tempos. As palavras que se escrevem em todos eles são continuação da primeira história vencedora, a primeira de todas as histórias. Assim o recordo. A principal virtude do jogador-escritor é a de nunca pensar na vitória e deixar correr a epopeia ao sabor da tinta da pena. Tem de ser humilde e generoso para que, através da sua mão abnegada, cresçam folhas na igual dimensão desse poema. Depois de ler estas palavras deve transcrevê-las para que façam parte da sua história que fará parte da minha. As palavras são suas e passarão a ser fortes como mais nenhuma. Esta pequena aliança unirá o tempo nas nossas histórias, tempo que, relembro, não existe, é apenas ilusão.
A mensagem do meu outro eu já faz parte desta história, e é também parte da sua.
Estamos mais fortes, unidos para enfrentar este momento de viragem.
O Benzerinagui é um jogo complexo, inconstante e extremamente imprevisível.
A qualquer momento os ventos podem soprar em estranhas direcções, as luzes podem apagar-se, as montanhas podem ruir e os heróis podem acabar derrotados pelo pérfido desejo de uma fria e cruel adversária.

O coração da montanha
Bate
Descompassado
Falha

O coração da montanha
Pára
Por instantes
Desaba
Numa luminosa brancura

O mar é o meu corpo
Passei a ser mar
Caminho
Onde voam as estrelas

Na montanha
Respiro
Reconheço-me
Medito

Escondido
Medito
Leio as histórias
Junto às pedras
Que as arquivam

Voo
Para lá das neblinas
Para lá das estrelas
Para lá de todas as galáxias
Dos desertos

Conheço o tempo
A lembrança
Sei quem sou
Quem fui
Quem serei

Debaixo deste branco
Deste azul
O tempo permanece silencioso
Tudo é imenso
Eterno
Tudo é fim
E princípio

Esta nunca foi a minha história
Tudo o que aqui se conta
Tudo o que aqui se canta
É como o tempo

Não existe
É apenas ilusão

terça-feira, 6 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 39




5 de Março de 2012

A jornada prepara-se para o dia que terminará.
Coreografias de bailados e as suas músicas são já ensaiados para o dia em que a viagem terminará.

( esta sim ... a balada de Baharhvatin cantada por Sheridan )


A tinta com que se escrevem as histórias mancha-se de lágrimas. As vozes tremem de emoção. O amor, cantado em cada uma delas, será defendido como nunca até à exaustão.
Cada palavra presa é desembrulhada com delicadeza e a surpresa surge ao descobrir-se o segredo que guardava.
Um mundo novo sai dos lábios de quem as conta, com fé e honestidade, e a noite cai de novo pois o tempo não é quando se escreve. A lua substitui o sol e o sol a lua e as estrelas que a acompanham. Renegam quem são para escutar as histórias escritas e as que se escrevem, renegam quem são para escutar as histórias que vencem o lugar da própria morte.
As palavras transportam satisfações para dentro dos enredos. São fiéis porque os seus autores deixam-se guiar nessa luta sem igual. Assim as histórias crescem como casulos tecidos por finos fios de seda aos sons dos sinos do destino. As suas ordens são claras e as marés não aguardam. Respondem ao mais importante dos reis em forma de poesia porque este as conheceu e as leu antes de todos os outros. As palavras das histórias recriam a própria vida assim como a natureza do amor e por isso são seguidas de perto para se poder traçar o destino destes jogadores. As paredes do salão continuam a avançar e as decisões tardam. A felicidade continua estampada nos rostos de todos aqueles que bebem estas epopeias servidas, sem descanso, por todas as holoesferas. Gostam de todas as oito sem excepção, e em silêncio não querem que terminem, não as querem apagar pois este Benzerinagui ficará mais pobre.
Coreografias de bailados e as suas músicas continuam a ser ensaiadas, com paixão, para o dia em que a viagem terminará. Em todas as histórias o amor vence a morte com cortesia, em todas elas o amor não é mentira e permite alcançar vitórias, em todas elas o amor permite amar para além da poesia e dos destinos cantados.
A luz e as nuvens do oriente chegam ao alto das montanhas maravilhosas iluminando o caminho até ao mosteiro. Ferido, quase derrotado, exausto, nu e esfomeado, é para lá que Hannibas avança. A morte e o perpétuo esquecimento ser-lhe-ão servidos se assim não proceder. E a morte não desiste, veste-se de tristeza, pinta-se com as cores negras do odioso. Öllin nunca desistiu de tentar vergar o peregrino e agora que Hannibas se encontra tão perto do templo a gémea joga a última carta invisível do baralho.
Todos os receios eram fundamentados.
A grande dama branca da montanha desaba inclemente por cima do corpo azul do futuro rei-serpente. Cego e marcado pelos múltiplos desafios da jornada, não conseguiu antecipar esta derradeira intromissão da escritora que assim fez desabar três quartos dos mais altos picos da montanha-mãe.
Wawaghan vibrou, o corpo azul escamado do peregrino vibrou, a maré da tarde vibrou e cobriu os joelhos doentes de Argenta junto à grande praia da capital do império informando-a do acontecido. O coração parou, os olhos fecharam-se e a mesma iluminada névoa branca inundou os olhos molhados da rainha de Chover.
- Nada mais importa! Estamos perdidos. O império foi derrotado, as histórias que aqui se compuseram foram irreversivelmente destruídas. Parem de ensaiar as coreografias de bailados e as suas músicas pois morreu a hipótese de dia em que a viagem terminará.
As mãos tingidas de sangue, como a montanha. As palavras tingidas de sangue, como as mãos de Argenta e o coração de Hannibas. A beleza das histórias, de todas as histórias, condenadas ao mais abjecto esquecimento por vontade de Öllin. A maré sobe rapidamente, cada vez mais gelada como as neves eternas que desabaram sobre Hannibas.
- Nada mais importa! Estamos perdidos. Mergulho, cansada, nas águas do Centaurydhis e contemplo o corpo azul escamado do meu filho vencido pelas neves eternas da mãe-montanha. Abraço o teu corpo que é o meu corpo, bondoso príncipe. Vejo-te apesar da neblina branca que me cega. A tua morte será a minha se estes tristes acontecimentos se consumarem neste fim.
Resta com o amor vencer a própria morte.
- Lágrimas e uma viagem, meu amor. Não existe maior verdade nas palavras do que aquela que se esconde na pedra da primeira história
A história, todas as histórias, podem ser resgatadas ao eterno silêncio dos esquecimentos se cessar o avanço das paredes do salão. A verdadeira natureza do amor, de todos os amores, esconde-se no coração de Wawaghan, esconde-se nas águas frias da maré do Centaurydhis.
- Sonhadores, sois uns sonhadores! Julgam ser possível vencer o meu poder. Se venci todos os anteriores Benzerinaguis é porque o meu nome, maior do que o de todos os adversários, jamais conhecerá o peso da derrota. As minhas histórias são como náufragos resgatados ao oceano que se transfiguram em heróis maiores que esse oceano onde naufragaram. Os passos nas finas areias das praias onde desembarcaram são as minhas primeiras palavras, os areais extensos são as minhas folhas brancas, o céu azul que as decora a minha luz e as luxuriantes paisagens a fértil imaginação que me invade nas horas de fraqueza. Sonhadores, sois todos uns sonhadores e agora, tão perto do fim, a montanha ruiu e a maré sobe. Os bailados, as coreografias e as músicas terão um destinatário diferente no final deste Benzerinagui!
No fundo das águas do Centauridhys Argenta mantém-se abraçada ao filho que não esperava encontrar assim.
O ambiente no salão de jogo sofreu abalo tremendo. Alguém informou os jogadores que as paredes se movimentam e os enredos começam a sofrer momentos de ruptura. Os mais frios e calculistas conseguem manter a frieza necessária para criar com a mesma qualidade, mas para alguns a tarefa tornou-se agora bem mais penosa.

sexta-feira, 2 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 38




2 de Março de 2012

Resgato à montanha a primeira das pedras de Março.
A luz é outra. As paredes do salão continuam imperturbáveis no seu lento movimento.
Resgato à primeira pedra estas palavras da história.
O silêncio é como o espaço vazio que mantém os elementos em sentido e esta história constrói-se desse silêncio. Sem ele, nenhuma pedra teria acontecido.
Escuto os passos de alguém que avança com todo o cuidado pelas escarpas geladas da mãe-montanha. Escuto a neve ranger baixinho. Comunica-me a presença do viajante a menos de uma hora daqui.
Desde que Wawaghan existe, os peregrinos contam os dias que faltam até esse momento único em que viajarão até um dos mais altos cumes da cordilheira. Ela passará a fazer parte deles, será como uma chave mestra que lhes facultará a iluminação necessária para finalmente entenderem a história.
Como as pedras que a ajudaram a crescer, os peregrinos são derrotados, são transformados, são ameaçados, são fustigados por cortantes ciclones gelados, por avalanches, pela escuridão, são atacados por matilhas de lobos brancos, são atirados como poeira para as lamas eternas do esquecimento de onde poucos conseguem regressar. São vítimas dos mais negros pensamentos e das memórias mais cruéis, são votados ao mais triste dos abandonos, ao mais gelado, sombrio e triste de todos os abandonos até que, finalmente, quando a alma se prepara para desistir, escutam o coração vibrante da montanha-mãe.
Imperturbável, serena, perpétua, conta-lhes partes da história primeira, conta-lhes como sabia que a iriam escutar. Os peregrinos passam a ser suas testemunhas, passam a fazer parte da sua história e nada mais interessa.
A partir desse momento tudo é diferente.
O peregrino resgata à montanha as palavras da primeira história.
O silêncio invade o peregrino que compreende o valor ímpar dessa riqueza.
A palavra invade o peregrino que entende o valor único dessa mensagem.
A luz branca cega o peregrino que já não necessita dos olhos para vislumbrar.
Um calor húmido, morno, invade o peregrino que ajuda a manter o universo em sentido.
O céu enfeita-se com o rosto do peregrino que ilumina Wawaghan com um sorriso.
O tempo delicado é retirado ao peregrino que deixa, por momentos, de existir.
O peregino passa a fazer parte de todos os tempos, de todos os sonhos e é agora parte importante dos ciclos de todos os elementos.
As pedras da montanha-mãe iluminam-se por instantes como sempre acontece quando nasce um universo.
Uma nova pedra é depositada no cume onde o peregrino descansou.
O peregrino desperta do sonho que o visitou esta noite com um delicado beijo da sua menina-princesa.
Sheridan canta a balada de seu pai junto ao rosto azul do futuro rei-serpente. Brinca com os seus cabelos, passeia os dedos finos e tatuados pelo rosto de Hannibas que desconhece o local onde se encontra. A menina-princesa tratou com todo o amor e carinho as asas ensanguentadas do jovem príncipe que apenas consegue discernir uma névoa esbranquiçada ao seu redor. Está fraco, ferido, cansado, e esta cegueira súbita não o deixa ver o rosto de Sheridan. A menina-princesa tratou com todo o amor e carinho mais de mil feridas do corpo de Hannibas. Limpou-lhe o rosto, o peito, os joelhos, os pés e as pernas cansadas. Manteve-o escondido na sua morada todo este tempo, aqui o alimentou de histórias servindo-lhe, essencialmente, as partes mais importantes da primeira em forma de canção. Sheridan derreteu com as mãos ferventes as neves mais puras da montanha, que passaram a água, que passaram a vapor e a água novamente. Sheridan voltou a mergulhar as mãos nas águas mornas e massajou o corpo derrotado do príncipe azul. Por momentos a pele escamada e fria de Hannibas voltou a ser a mesma pele desprotegida com que nasceu e Sheridan beijou todos os vales, todos os rios e todas as montanhas desse corpo, vezes e vezes sem conta. A chave do coração de Sheridan apareceu no coração de Hannibas. A menina-princesa voltou a mergulhar as mãos tatuadas na água morna nascida das neves de Wawaghan e por mais trezentas vezes massajou o corpo do príncipe, beijou todos os vales, todos os rios e todas as montanhas desse corpo até que, com o último desses beijos, o peregrino despertou do sonho que o invadiu.
- Estou cego! Desejava ver-te, olhar o teu rosto, saber de que cor se veste o teu sorriso e a tua bondade. Porque não me respondes? Porque me queres assim tanto se quase nada tenho para oferecer? A minha história encontrou a tua porque assim estava escrito na pedra da primeira. Sinto o teu corpo, o teu perfume, a tua alma na minha e o teu coração no meu, mas não te consigo ver, meu amor. Esta luminosa brancura é o que me resta. O teu carinho salvou-me, mais uma vez, talvez a última vez. Mas que herói é este que se deixa tantas vezes derrotar? Disseram-me para dar uso às asas nesta parte do caminho. Ao mosteiro de Zharkhanis só o peregrino penitente e despido pode aceder, e como tal assim o fiz. Fui derrotado! Durante esta fase da jornada o silêncio invadiu-me e quase enlouqueci. E como era importante saber escutar esse silêncio! Com ele fui capaz de aceder à primeira de todas as palavras e pela primeira vez entendi o significado da mensagem. Desde então ceguei. Primeiro, com a escuridão servida por uma súbita avalanche que me cobriu, depois, com o ataque feroz de uma dezena de lobos da montanha. A primeira palavra que me veio à memória foi essa palavra primeira que repeti centenas de vezes durante a luta até que uma luz branca, intensa, fortíssima, saiu de mim e destroçou em pedaços os inocentes animais servindo-me nova cor a esta cegueira. Estou cego! Desejava ver-te, olhar o teu rosto e ver-te verdadeiramente sem ter de te tocar. Por ti irei escrever o que falta desta história, nem que todas as paredes do universo avancem sobre nós à velocidade de todos os silêncios!
Hannibas deixou de sentir Sheridan após esse último beijo.
As asas estão revigoradas, saradas, fortes e resistentes.
O corpo voltou a adquirir a protecção azul escamada de serpente.
A balada de Baharhvatin, cantada pela voz melodiosa de Sheridan, foi substituída pelo poder do silêncio.
O jovem príncipe tem de cumprir a promessa realizada. Tem de conseguir escrever o que falta da história para vencer todas as paredes do universo.
A neve range com maior nitidez.
Volto a escutar os passos de alguém que avança cuidadosamente pelas escarpas geladas da montanha-mãe. O coração de Wawaghan vibra na mesma frequência da pele azul texturada de meu sobrinho. É assim que ele sente este mosteiro invisível onde me abrigo e do qual sou guardião, aqui, onde o tempo não existe, é apenas ilusão. Estes são os seus passos. Só ele, neste momento, é capaz de aqui chegar. Só ele será capaz de responder correctamente às questões que lhe serão colocadas pela voz da lei austera, como dessa primeira vez.
Aqui não existem regras mas todos os que aqui chegaram procederam de acordo com elas.
Venceram silêncios e venceram as histórias de tantas outras pedras como fazem os vencedores do lendário jogo Benzerinagui.
Aqui se resgatará a última pedra da montanha.
Chover terá uma longa e próspera história pela frente, assim Hannibas saiba escutar as vozes e as histórias guardadas no seu coração.


Uma história
Construída com o poder dos silêncios
Escuta todos os passos
Sente a presença dos viajantes
Peregrinos

Uma história
Cresce com as pedras
Nas pedras
É votada ao mais triste abandono
Onde escuta o coração vibrante da montanha

Uma história
Invadida pelo silêncio
Que invade o peregrino
Sabe que será escutada
Pelo cego peregrino

Uma história
Faz parte do tempo
Faz parte dos sonhos
Faz parte importante dos ciclos
De todos os elementos

Uma história
Contada com amor
Tratada com amor e carinho
Acontece no coração da montanha
Nasce no coração da montanha

Uma história
Encontra outra história
Porque uma outra assim quis
Corpo
Perfume
Alma
Corações partilhados
Nas neves de Wawaghan

Uma história
Escrever o que falta da história

Hannibas
Despertou do sonho
Que o visitou
Cumprirá a promessa final
Escrever o que falta da história
Com amor

Vencer o poder inaudito
Das paredes do universo
Como novo rei-escritor